Compartilho a seguir o excelente texto “A Paz…“, de
Jean Yves-Leloup, inédito em livro. Magistralmente, o autor faz pontes entre a
paz, o amor, o medo e a mente. Para ler, reler e meditar no que lhe fizer
sentido.
”Paz, em
hebraico, é Shalom, e, literalmente, Shalom quer dizer: “estar inteiro”, “estar
em repouso”… É então conveniente que perguntemos: o que nos impede de estarmos
inteiros? O que nos impede de experimentarmos o repouso, isto é, de estarmos em
paz?
As respostas
são múltiplas; destaco apenas as que me parecem essenciais;
- O que nos impede de estarmos inteiros, de estarmos
inteiramente presentes na integridade do que somos, é o medo.
- O que nos permite estarmos inteiros, estarmos
inteiramente presentes na integridade do que somos, é o amor.
O contrário do amor, e portanto da realização do que
somos, não é fundamentalmente o ódio, e sim o medo. Medo de quem? Medo de que? Medo de amar, melhor dizendo, de
se perder, pois amar antes de se encontrar é perder-se.
Certamente, existe toda sorte de medo: do
desconhecido, do sofrimento, do abandono, da morte… Todos esses medos podem
resumir-se num só: medo de ser “nada”.
Este medo nos leva a esforços inimagináveis, para
provarmos a nós mesmos e aos outros que somos alguma coisa e que “vale à pena”
sermos amados, que o merecemos… Ser amado seria, portanto, um direito do homem?
Infelizmente, este é um segredo muito bem guardado:
aquele que procura ou solicita o amor jamais o encontrará… Só o encontramos no
momento em que o damos… Unicamente quem ama, quem se torna amável e é capaz
desse dom “gracioso” recebe o amor gratuitamente.
O Amor jamais se manifesta àquele que o pede, mas se
revela sem cessar a quem o doa. Aquele
que compreendeu e viveu isto sente-se em paz.
E também inteiro, porque só o amor nos realiza (e é o
cumprimento da lei).
O medo nos “castra”, torna-nos enfermos e impede a
livre circulação da vida em todos os nossos membros.
E no Amor não há “membros impuros”: “Tudo é puro para
aquele que é puro”; é o Amor que purifica. Amar com todo o seu ser, este é o
mandamento (mitzvah), ou, mais exatamente, o “exercício” que nos é proposto:
“Amarás com todo o teu coração, com todo o teu espírito, com todas as tuas
forças”; isto traz também uma esperança. Um dia amarei inteiramente, não somente
com o meu corpo, minha cabeça ou meu coração, mas “inteiramente”; um dia, se
almejo isto sem perder a esperança, estarei em paz.
Pois é suficiente desejar amar, querer amar, mesmo que
ainda não seja amar… Bem sabemos que o inferno não está nos outros; o inferno é
não amar, é não se amar inteiramente, até em nossa dificuldade e algumas vezes
em nossa incapacidade de amar… Nesse caso, talvez seja bastante não mais
querer, não mais ter medo deste medo sutil, menos grosseiro, que é o medo de
não ser amado, o medo de não amar… Aquele que perdeu o medo de ser “nada” não
tem mais medo de tudo; paradoxalmente, é o medo de ser nada que nos impede de
ser tudo.
Se aceitássemos, por um instante, este “nada” que
somos, este “nada a mais e nada a menos” do que somos, então, nesse mesmo
momento, não haveria mais obstáculos à revelação e ao desdobramento do Ser que
ama, em nós e através de nós.
Se, supostamente, ser amado é um direito do homem, ser
capaz de doar é uma realização, uma graça divina concedida ao homem; a alegria
de participar da Dádiva e da Vida do Ser que faz “girar a Terra, o coração
humano e as demais estrelas”, generosamente…
Porém, não fosse pelo fato de nos “sentirmos mal”,
como seria possível aceitarmos “ser nada” quando nos sentimos ser alguma coisa? O termo “nada” pode parecer negativo; talvez
fosse preciso dizer simplesmente “ser”, sem acrescentar qualquer palavra, para
podermos pressentir que o que se soma ao “ser” é algo de “mental” e
compreendermos melhor a palavra do Cristo, precedida pela de Buda (seis séculos
antes): “O que é, é, o que não é, não é”.
Tudo o que é dito a mais vem do mental ou do “mau”, ou ainda, em algumas
traduções, do “mentiroso”.
Sentir-se em paz é estar num corpo relaxado, com o
coração livre e a mente serena. E
conhecendo melhor, hoje, as funções coordenadoras do cérebro, é sem dúvida pelo
mental que devemos começar. Ser nada a
mais (e nada a menos) do que somos – estar em paz – pressupõe uma mente
pacificada, em repouso, e é o segundo sentido da palavra shalom.
Por que não
estamos em repouso? Não somente há o medo de ser “nada” (ser mais ou ser menos
do que somos), mas existem as lembranças, com as quais nos identificamos e que
tomamos por nosso verdadeiro ser. O
caminho para a paz é aquele que nos faz passar das nossas identidades
provisórias, irrisórias, transitórias, para a nossa identidade essencial (eu
sou o que eu sou).
Os Padres do Deserto* falavam de oito logismos, ou
pacotes de memórias, com os quais nos identificamos e que nos impedem de estar em paz. São eles:
1. Gastrimargia, ou a identificação com nossas fomes,
sedes e apetites, o resultado de todas as nossas necessidades, que e somatizam,
na maior parte do tempo, oralmente (bulimia, anorexia);
2. Philarguria, ou o medo de nos faltar algo, que se
manifesta pela acumulação de bens inúteis; identificamo-nos e buscamos a
segurança, pelo que temos e pelo que possuímos;
3. Pornéia, ou
a identificação com a nossa vida pulsional, com o medo de nos faltar vitalidade
e desejo;
4. Orgé, ou a
dominação do irascível e do emocional, a cólera de não ser reconhecido como
“centro do mundo”, “digno de reconhecimento e respeito”;
5. Lupé, ou a
tristeza de não sermos amados como gostaríamos de ser;
6. Acedia, ou a
tristeza de não sermos amados de forma alguma, o desespero diante da evidência
de que nunca fomos e nunca seremos amados (a menos que cessemos de pedir e nos
tornemos capazes de doar);
7. Kenodoxia,
ou a vaidade e a presunção que nos identificam com a imagem que fazemos de nós
mesmos, independentemente do que somos na verdade; isto só acontece com
angústia, e esta é proporcional à diferença que existe entre o que somos e o
que pretendemos ser;
8. Uperephania, sem dúvida, a patologia mais grave:
trata-se de colocar nossa identidade ilusória como se fosse a única realidade,
e tomarmos a nós mesmos por única referência e juízes do que é bom ou mau;
considerar todas as coisas em relação ao prazer ou desprazer que elas nos
proporcionam e fazer delas uma lei válida para todos.
Aos oito logismos, ou pensamentos, poderíamos
acrescentar muitos outros, como o ciúme, a inveja… e todas as projeções que nos
impedem de ver e de aproveitar o que está no presente. Não por acaso, mais tarde, os Padres do
Deserto chamaram estes pensamentos ou expressões da mente, que constituem
obstáculos à apreensão simples e pacífica do que existe e do que somos, de
“demônios” (shatan, que, em hebraico, quer dizer: “obstáculo”).
Em resumo, o principal obstáculo à paz, o maior dos
demônios é a nossa própria mente, este reservatório de emoções passadas, que se
derrama sem parar sobre o presente; este “pacote de memórias” que denominamos
ego, ou eu. Quem sofre ou é infeliz é
sempre o eu e nossa identificação com o que não somos realmente.
Que só o presente existe é um segredo bem guardado; o
que era, não é mais; o que será, ainda não é; se vivermos eternamente em nossos
arrependimentos e projetos, teremos que sofrer e passaremos ao largo do
“segredo”… “Ora ao teu Pai que está aí, dentro do segredo”, na presença do que
é presente. São palavras do Evangelho e
também palavras de cura… A morte não existe ainda, ela não é.
Só permanece este “Eu Sou”, que existe desde sempre e
para sempre. Não podemos ir para outro
lugar, senão onde estamos; e onde nos encontramos aqui já estamos. Por que procurar, em outra parte, a vida e a
paz que nós somos, se a paz é nossa verdadeira natureza, não está por
fazer? Trata-se, primeiramente, de
conferir menos importância àquilo que nos “impede” de estar em paz; depois, não
lhe dar importância alguma, se quisermos; e isto significa aderir, instante
após instante, ao que é, com um espírito silencioso, uma mente serena, ou
melhor, não identificados com as memórias e com as emoções que essas memórias
provocam.
Lembrar-se de que nossa verdadeira natureza está em
paz é uma forma universal de oração.
Essa rememoração de nosso ser verdadeiro encontra-se, efetivamente, na
base das práticas de meditação de várias culturas ou religiões (dhikr – prática
islâmica; japa – modalidade de ioga; hesicasmo – seita antiga de místicos
cristãos orientais, etc.).
Temos medo de que?
De perdermos a cabeça, perdermos a alma, de não sermos o que nossas
memórias nos dizem que somos, não sermos coisa alguma do que pensamos ser? Perdem-se as ilusões, os pensamentos, e fica
somente o medo de morrer.
Se eu paro de me identificar com o que deve morrer,
permaneço já naquilo que sou desde sempre. Não pode haver outro artesão da paz
que não seja aquele cujo corpo está relaxado, que tem o coração livre e a mente
pacificada.
Mesmo o nosso desejo de paz pode tornar-se uma tensão,
um nervosismo, um obstáculo à paz, uma obrigação, um dever que se somará à
infelicidade e à inquietação do mundo.
Afirmar que
estamos em paz não é negar nossos medos, nossas memórias, nossos sofrimentos… é
colocá-los em seus devidos lugares, na corrente insensata e tranqüila da
verdadeira Vida…“
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Jean Yves-Leloup (1950-) – francês, doutor em
Psicologia, Filosofia e Teologia, escritor, conferencista dominicano e depois
padre ortodoxo.