sexta-feira, 23 de março de 2012

A Ética do Mercado e as Licitações Relativas


Quando Renata Cavas falou em horário nobre a celebre frase: ...”É a ética do mercado”, a galera respondeu: — oooooooohhhh!!!.
Mais uma grande lei universal poderia ter sido descoberta. Desde que Copérnico propôs que a terra seria apenas mais uma poeira cósmica e não o centro do Universo, desde que Newton descobriu que a queda de uma maçã na cabeça produziria, não só uma terrível dor de cabeça, mas também a teoria da lei de que “tudo que está no alto pode cair”, e desde que Einstein, viajando em pensamento em um raio de luz (o que ele tomou?), sugeriu que tudo era relativo, e que “nem tudo é o que parece”, seria esta a maior descoberta do pensamento humano?
Só o tempo dirá. Mas afinal Renata Cavas falou algo novo? Disse alguma grande mentira? Maquiavel poderia perfeitamente ampliar o alcance destas sábias palavras: “Esta é a ética da política, a ética dos bancos, a ética do direito, a ética enfim do ser humano”.
Cavas mostrou apenas que a distancia entre uma verdade singela, apregoada em prosa e versos na surdina das alcovas e aquela aceita ostensivamente em frente a uma câmera é o tamanho da propina.
A ética assim como a democracia é uma utopia. Um pensamento proposto por algum filósofo grego alcoolizado, que como um farol na escuridão, continua a brilhar no futuro da consciência humana.
Na prática e antes do advento das câmeras escondidas, a ética era aquela coisa que dizíamos em alto bom tom como o fariseu em frente ao altar, mas que negávamos às escondidas diante de nossos interesses pessoais.
Ou seja, se eu estou faturando a ética do mercado está funcionando muito bem. Quem não está satisfeito, ou se conforme com sua honesta incompetência ou se curve ao bezerro de ouro.
A ética do mercado é regulada pelo lucro que consegue promover. Quanto mais lucro angaria, tanto mais ética é a empresa.
E assim com o mundo absolutista, seguro, eterno balançou diante da proposição de Einstein, as bases do mercado começaram a se mover buscando novo ponto de equilíbrio.
Empresas investigadas, diretores e funcionários de confiança demitidos, verdades absolutas mostradas pelas câmeras, negadas, neste festival de cinismo.
É preciso rápido isolar o mau, que a reportagem da TV provocou e mostrar que aquilo que foi mostrado é uma exceção.
Afinal aquela ética de que falou Renata se referia apenas as empresas investigadas. O mercado continua como sempre esteve com sua Ética a La grega preservada, acima do bem e mal, se adaptando a estes novos tempos.
É preciso se formar novos diretores e funcionários mais espertos e menos faladores, e com um discurso bem treinado, com senhas mais seguras para negociar propinas a céu aberto e mesmo diante de câmeras, e não mais nos estacionamentos de Shoppings e nem nas “Quintas da Boa vista”.
Quem sabe também tornar obrigatório o uso de detectores de câmeras para garantir a lisura e segurança nos negócios.
Não se deve de forma nenhuma mudar a dinâmica e os parâmetros dos negócios. Não se deve instruir os funcionários e diretores a serem honestos e seguirem as regras ditadas em lei e apregoadas aos quatro ventos.
Isto seria uma conspiração contra o lucro, e um atestado de incompetência das Empresas. Ganhar é mais importante que competir. Ganhar uma concorrência não é uma opção, mas uma obrigação.
O Mercado precisa urgente encontrar uma nova ética que resgate sua estabilidade e credibilidade. E tem que ser uma Ética que resista bravamente até pelo menos ao próximo escândalo.



                                                                         João Drummond
 

terça-feira, 13 de março de 2012

A Felicidade é um direito?


A CRENÇA DE QUE A FELICIDADE É UM DIREITO TEM TORNADO DESPREPARADA A GERAÇÃO MAIS PREPARADA

 Ao conviver com os bem mais jovens, com aqueles que se tornaram adultos há pouco e com aqueles que estão tateando para virar gente grande, percebo que estamos diante da geração mais preparada e, ao mesmo tempo, da mais despreparada. Preparada do ponto de vista das habilidades, despreparada porque não sabe lidar com frustrações.


Preparada porque é capaz de usar as ferramentas da tecnologia, despreparada porque despreza o esforço. Preparada porque conhece o mundo em viagens protegidas, despreparada porque desconhece a fragilidade da matéria da vida.
E por tudo isso sofre, sofre muito, porque foi ensinada a acreditar que nasceu com o patrimônio da felicidade. E não foi ensinada a criar a partir da dor.


Há uma geração de classe média que estudou em bons colégios, é fluente em outras línguas, viajou para o exterior e teve acesso à cultura e à tecnologia. Uma geração que teve muito mais do que seus pais. Ao mesmo
tempo, cresceu com a ilusão de que a vida é fácil. Ou que já nascem prontos, bastaria apenas que o mundo reconhecesse a sua genialidade.


Tenho me deparado com jovens que esperam ter no mercado de trabalho uma continuação de suas casas - onde o chefe seria um pai ou uma mãe complacente, que tudo concede. Foram ensinados a pensar que merecem, seja lá o que for que queiram. E quando isso não acontece - porque obviamente não acontece - sentem-se traídos, revoltam-se com a "injustiça" e boa parte se emburra e desiste.
 Como esses estreantes na vida adulta foram crianças e adolescentes que ganharam tudo, sem ter de lutar por quase nada de relevante, desconhecem que a vida é construção - e para conquistar um espaço no mundo é preciso ralar muito. Com ética e honestidade - e não a cotoveladas ou aos gritos. Como seus pais não conseguiram dizer, é o mundo que anuncia a eles uma nova não lá muito animadora: viver é para os insistentes.


Por que boa parte dessa nova geração é assim? Penso que este é um questionamento importante para quem está educando uma criança ou um adolescente hoje. Nossa época tem sido marcada pela ilusão de que a felicidade é uma espécie de direito. E tenho testemunhado a angústia de muitos pais para garantir que os filhos sejam "felizes". Pais que fazem malabarismos para dar tudo aos filhos e protegê-los de todos os perrengues, sem esperar nenhuma responsabilização nem reciprocidade.
É como se os filhos nascessem e imediatamente os pais já se tornassem devedores. Para estes, frustrar os filhos é sinônimo de fracasso pessoal.


Mas é possível uma vida sem frustrações? Não é importante que os filhos compreendam como parte do processo educativo duas premissas básicas do viver, a frustração e o esforço? Ou a falta e a busca, duas faces de um mesmo movimento? Existe alguém que viva sem se confrontar dia após dia com os limites tanto de sua condição humana como de suas capacidades individuais?


Nossa classe média parece desprezar o esforço. Prefere a genialidade. O valor está no dom, naquilo que já nasce pronto. Dizer que "fulano é esforçado" é quase uma ofensa. Ter de dar duro para conquistar algo parece já vir assinalado com o carimbo de perdedor. Bacana é o cara que não estudou, passou a noite na balada e foi aprovado no vestibular de Medicina.


Este atesta a excelência dos genes de seus pais. Esforçar-se é, no máximo, coisa para os filhos da classe C, que ainda precisam assegurar seu lugar no mundo.
Da mesma forma que supostamente seria possível construir um lugar sem esforço, existe a crença não menos fantasiosa de que é possível viver sem sofrer. De que as dores inerentes a toda vida são uma anomalia e, como percebo em muitos jovens, uma espécie de traição ao futuro que deveria estar garantido. Pais e filhos têm pagado caro pela crença de que a felicidade é um direito. E a frustração um fracasso. Talvez aí esteja uma pista para compreender a geração do "eu mereço".


Basta andar por esse mundo para testemunhar o rosto de espanto e de mágoa de jovens ao descobrir que a vida não é como os pais tinham lhes prometido.
Expressão que logo muda para o emburramento. E o pior é que sofrem terrivelmente. Porque possuem muitas habilidades e ferramentas, mas não têm o menor preparo para lidar com a dor e as decepções. Nem imaginam que viver é também ter de aceitar limitações - e que ninguém, por mais brilhante que seja, consegue tudo o que quer.


A questão, como poderia formular o filósofo Garrincha, é: "Estes pais e estes filhos combinaram com a vida que seria fácil"? É no passar dos dias que a conta não fecha e o projeto construído sobre fumaça desaparece deixando nenhum chão. Ninguém descobre que viver é complicado quando cresce ou deveria crescer - este momento é apenas quando a condição humana, frágil e falha, começa a se explicitar no confronto com os muros da realidade. Desde sempre sofremos. E mais vamos sofrer se não temos espaço nem mesmo para falar da tristeza e da confusão.


Me parece que é isso que tem acontecido em muitas famílias por aí: se a felicidade é um imperativo, o item principal do pacote completo que os pais supostamente teriam de garantir aos filhos para serem considerados bem sucedidos, como falar de dor, de medo e da sensação de se sentir desencaixado? Não há espaço para nada que seja da vida, que pertença aos espasmos de crescer duvidando de seu lugar no mundo, porque isso seria um reconhecimento da falência do projeto familiar construído sobre a ilusão da felicidade e da completude.


Quando o que não pode ser dito vira sintoma - já que ninguém está disposto a escutar, porque escutar significaria rever escolhas e reconhecer equívocos - o mais fácil é calar. E não por acaso se cala com medicamentos e cada vez mais cedo o desconforto de crianças que não se comportam segundo o manual.
Assim, a família pode tocar o cotidiano sem que ninguém precise olhar de verdade para ninguém dentro de casa. Se os filhos têm o direito de ser felizes simplesmente porque existem - e aos pais caberia garantir esse direito - que tipo de relação pais e filhos podem ter? Como seria possível estabelecer um vínculo genuíno se o sofrimento, o medo e as dúvidas estão previamente fora dele? Se a relação está construída sobre uma ilusão, só é possível fingir.


Aos filhos cabe fingir felicidade - e, como não conseguem, passam a exigir cada vez mais de tudo, especialmente coisas materiais, já que estas são as mais fáceis de alcançar - e aos pais cabe fingir ter a possibilidade de garantir a felicidade, o que sabem intimamente que é uma mentira porque a sentem na própria pele dia após dia. É pelos objetos de consumo que a novela familiar tem se desenrolado, onde os pais fazem de conta que dão o que ninguém pode dar, e os filhos simulam receber o que só eles podem buscar. E por isso logo é preciso criar uma nova demanda para manter o jogo funcionando.


O resultado disso é pais e filhos angustiados, que vão conviver uma vida inteira, mas se desconhecem. E, portanto, estão perdendo uma grande chance. Todos sofrem muito nesse teatro de desencontros anunciados. E mais sofrem porque precisam fingir que existe uma vida em que se pode tudo. E acreditar que se pode tudo é o atalho mais rápido para alcançar não a frustração que move, mas aquela que paralisa.


Quando converso com esses jovens no parapeito da vida adulta, com suas imensas possibilidades e riscos tão grandiosos quanto, percebo que precisam muito de realidade. Com tudo o que a realidade é. Sim, assumir a narrativa da própria vida é para quem tem coragem. Não é complicado porque você vai ter competidores com habilidades iguais ou superiores a sua, mas porque se tornar aquilo que se é, buscar a própria voz, é escolher um percurso pontilhado de desvios e sem nenhuma certeza de chegada. É viver com dúvidas e ter de responder pelas próprias escolhas. Mas é nesse movimento que a gente vira gente grande.


Seria muito bacana que os pais de hoje entendessem que tão importante quanto uma boa escola ou um curso de línguas ou um Ipad é dizer de vez em quando: "Te vira, meu filho. Você sempre poderá contar comigo, mas essa briga é tua". Assim como sentar para jantar e falar da vida como ela é: "Olha, meu dia foi difícil" ou "Estou com dúvidas, estou com medo, estou confuso" ou "Não sei o que fazer, mas estou tentando descobrir".


Porque fingir que está tudo bem e que tudo pode significa dizer ao seu filho que você não confia nele nem o respeita, já que o trata como um imbecil, incapaz de compreender a matéria da existência.
É tão ruim quanto ligar a TV em volume alto o suficiente para que nada que ameace o frágil equilíbrio doméstico possa ser dito.


Agora, se os pais mentiram que a felicidade é um direito e seu filho merece tudo simplesmente por existir, paciência. De nada vai adiantar choramingar ou emburrar ao descobrir que vai ter de conquistar seu espaço no mundo sem nenhuma garantia. O melhor a fazer é ter a coragem de escolher. Seja a escolha de lutar pelo seu desejo - ou para descobri-lo -, seja a de abrir mão dele. E não culpar ninguém porque eventualmente não deu certo, porque com certeza vai dar errado muitas vezes. Ou transferir para o outro a responsabilidade pela sua desistência.


Crescer é compreender que o fato de a vida ser falta não a torna menor. Sim, a vida é insuficiente. Mas é o que temos. E é melhor não perder tempo se sentindo injustiçado porque um dia ela acaba.

 ELIANE BRUM - Jornalista, escritora e documentarista. Ganhou mais de 40 prêmios nacionais e internacionais de reportagem. É autora de Coluna Prestes - O Avesso da Lenda (Artes e Ofícios), A Vida Que Ninguém Vê (Arquipélago Editorial, Prêmio Jabuti 2007) e O Olho da Rua (Globo).


segunda-feira, 5 de março de 2012

Brasil e FIFA - Menos Fala e Mais Ação


O Brasil, patrocinador da próxima Copa do Mundo e a FIFA, Entidade máxima do futebol mundial precisam urgentemente de afinar o discurso e as ações.
Depois das operações do exercito nos morros cariocas, com vistas à copa de 2014, que devolveu ao Rio de Janeiro a credibilidade e a segurança para organizar um evento desta magnitude, este esforço não pode ser neutralizado por atitudes e falas destemperadas de ambos os lados.
Jérôme Valcke, secretário geral da FIFA, foi infeliz em suas declarações, embora tenha razão em cobrar mais empenho do governo brasileiro, na organização do evento. Cometeu uma gafe diplomática. Aldo Rebelo ministro do esporte, respondeu de pronto, de maneira não adequada, como representante de um Governo democrático.
As duas retóricas devem ser condenadas. Não levam a nenhuma solução prática e não resolvem os grandes problemas que temos pela frente, para promovermos uma copa digna do Brasil e de seu povo.
As trocas de farpas continuaram e é preciso mais juízo e mais tempera entre pessoas que falam por entidades e governo e não por si próprias.
Se as falas devem ser duras que o sejam nos bastidores. As falas oficiais devem respeitar os ritos que regulam a relações internacionais entre governos e entidades.
O que esperar de uma copa do mundo, em termos de organização, que deve ser exemplar na conduta desportiva, se seus organizadores e patrocinadores começam a exibir surtos de arroubos emocionais e atitudes egocêntricas e infantis.
Que todos nós estamos preocupados com a copa do mundo no Brasil não é novidade. Sabemos como as coisas andam por aqui quando dependemos da política e de empreitas de grande porte.
Há muita coisa a ser feita em termos de infra-estrutura, e estamos vendo que ha apenas dois anos do evento pouca coisa foi feita, com relação aos aeroportos, redes hoteleiras, estradas, etc.
E mais, com as tradições de corrupção na nossa viciada política, ficamos a espera de um milagre, no sentido de que os recursos e as ações nesta esfera cumpram efetivamente seus objetivos.
Temos a impressão que o plano “B” do governo será cercar o Brasil real com tapumes e verbas publicitárias para fazer uma copa “pra inglês vê”, mostrando ao mundo um Brasil de fantasia.  E não só para inglês. Também para, americano, Frances, alemão, japonês etc.
Enquanto isto as entidades e governos envolvidos deveriam, retirar de forma discreta, da sua organização, estas figuras destemperadas, falastronas e boquirrotas, e colocar em seu lugar pessoas realmente competentes, tanto para agir, quanto para negociar e dar declarações públicas.
Já temos problemas demais com esta copa para ficamos a mercê destes arroubos de ego.

João Drummond




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Manifestações culturais na Praça Tiradentes mantém viva tradição em Sete Lagoas

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domingo, 4 de março de 2012

“A Paz…“, de Jean Yves-Leloup,


Compartilho a seguir o excelente texto “A Paz…“, de Jean Yves-Leloup, inédito em livro. Magistralmente, o autor faz pontes entre a paz, o amor, o medo e a mente. Para ler, reler e meditar no que lhe fizer sentido.
   
 ”Paz, em hebraico, é Shalom, e, literalmente, Shalom quer dizer: “estar inteiro”, “estar em repouso”… É então conveniente que perguntemos: o que nos impede de estarmos inteiros? O que nos impede de experimentarmos o repouso, isto é, de estarmos em paz?
   
 As respostas são múltiplas; destaco apenas as que me parecem essenciais;
- O que nos impede de estarmos inteiros, de estarmos inteiramente presentes na integridade do que somos, é o medo.
- O que nos permite estarmos inteiros, estarmos inteiramente presentes na integridade do que somos, é o amor.   
O contrário do amor, e portanto da realização do que somos, não é fundamentalmente o ódio, e sim o medo. Medo de quem?  Medo de que? Medo de amar, melhor dizendo, de se perder, pois amar antes de se encontrar é perder-se.
Certamente, existe toda sorte de medo: do desconhecido, do sofrimento, do abandono, da morte… Todos esses medos podem resumir-se num só: medo de ser “nada”.
Este medo nos leva a esforços inimagináveis, para provarmos a nós mesmos e aos outros que somos alguma coisa e que “vale à pena” sermos amados, que o merecemos… Ser amado seria, portanto, um direito do homem?
Infelizmente, este é um segredo muito bem guardado: aquele que procura ou solicita o amor jamais o encontrará… Só o encontramos no momento em que o damos… Unicamente quem ama, quem se torna amável e é capaz desse dom “gracioso” recebe o amor gratuitamente.
O Amor jamais se manifesta àquele que o pede, mas se revela sem cessar a quem o doa.  Aquele que compreendeu e viveu isto sente-se em paz. 
E também inteiro, porque só o amor nos realiza (e é o cumprimento da lei).
O medo nos “castra”, torna-nos enfermos e impede a livre circulação da vida em todos os nossos membros. 
E no Amor não há “membros impuros”: “Tudo é puro para aquele que é puro”; é o Amor que purifica. Amar com todo o seu ser, este é o mandamento (mitzvah), ou, mais exatamente, o “exercício” que nos é proposto: “Amarás com todo o teu coração, com todo o teu espírito, com todas as tuas forças”; isto traz também uma esperança. Um dia amarei inteiramente, não somente com o meu corpo, minha cabeça ou meu coração, mas “inteiramente”; um dia, se almejo isto sem perder a esperança, estarei em paz. 
Pois é suficiente desejar amar, querer amar, mesmo que ainda não seja amar… Bem sabemos que o inferno não está nos outros; o inferno é não amar, é não se amar inteiramente, até em nossa dificuldade e algumas vezes em nossa incapacidade de amar… Nesse caso, talvez seja bastante não mais querer, não mais ter medo deste medo sutil, menos grosseiro, que é o medo de não ser amado, o medo de não amar… Aquele que perdeu o medo de ser “nada” não tem mais medo de tudo; paradoxalmente, é o medo de ser nada que nos impede de ser tudo. 
Se aceitássemos, por um instante, este “nada” que somos, este “nada a mais e nada a menos” do que somos, então, nesse mesmo momento, não haveria mais obstáculos à revelação e ao desdobramento do Ser que ama, em nós e através de nós.
Se, supostamente, ser amado é um direito do homem, ser capaz de doar é uma realização, uma graça divina concedida ao homem; a alegria de participar da Dádiva e da Vida do Ser que faz “girar a Terra, o coração humano e as demais estrelas”, generosamente…
Porém, não fosse pelo fato de nos “sentirmos mal”, como seria possível aceitarmos “ser nada” quando nos sentimos ser alguma coisa?  O termo “nada” pode parecer negativo; talvez fosse preciso dizer simplesmente “ser”, sem acrescentar qualquer palavra, para podermos pressentir que o que se soma ao “ser” é algo de “mental” e compreendermos melhor a palavra do Cristo, precedida pela de Buda (seis séculos antes): “O que é, é, o que não é, não é”.  Tudo o que é dito a mais vem do mental ou do “mau”, ou ainda, em algumas traduções, do “mentiroso”.
Sentir-se em paz é estar num corpo relaxado, com o coração livre e a mente serena.  E conhecendo melhor, hoje, as funções coordenadoras do cérebro, é sem dúvida pelo mental que devemos começar.  Ser nada a mais (e nada a menos) do que somos – estar em paz – pressupõe uma mente pacificada, em repouso, e é o segundo sentido da palavra shalom.
     Por que não estamos em repouso? Não somente há o medo de ser “nada” (ser mais ou ser menos do que somos), mas existem as lembranças, com as quais nos identificamos e que tomamos por nosso verdadeiro ser.  O caminho para a paz é aquele que nos faz passar das nossas identidades provisórias, irrisórias, transitórias, para a nossa identidade essencial (eu sou o que eu sou).

Os Padres do Deserto* falavam de oito logismos, ou pacotes de memórias, com os quais nos identificamos e que nos impedem de estar em paz.  São eles:
1. Gastrimargia, ou a identificação com nossas fomes, sedes e apetites, o resultado de todas as nossas necessidades, que e somatizam, na maior parte do tempo, oralmente (bulimia, anorexia);
2. Philarguria, ou o medo de nos faltar algo, que se manifesta pela acumulação de bens inúteis; identificamo-nos e buscamos a segurança, pelo que temos e pelo que possuímos;
3.  Pornéia, ou a identificação com a nossa vida pulsional, com o medo de nos faltar vitalidade e desejo; 
4.  Orgé, ou a dominação do irascível e do emocional, a cólera de não ser reconhecido como “centro do mundo”, “digno de reconhecimento e respeito”;      
5.  Lupé, ou a tristeza de não sermos amados como gostaríamos de ser;
6.  Acedia, ou a tristeza de não sermos amados de forma alguma, o desespero diante da evidência de que nunca fomos e nunca seremos amados (a menos que cessemos de pedir e nos tornemos capazes de doar);
7.  Kenodoxia, ou a vaidade e a presunção que nos identificam com a imagem que fazemos de nós mesmos, independentemente do que somos na verdade; isto só acontece com angústia, e esta é proporcional à diferença que existe entre o que somos e o que pretendemos ser; 
8. Uperephania, sem dúvida, a patologia mais grave: trata-se de colocar nossa identidade ilusória como se fosse a única realidade, e tomarmos a nós mesmos por única referência e juízes do que é bom ou mau; considerar todas as coisas em relação ao prazer ou desprazer que elas nos proporcionam e fazer delas uma lei válida para todos.
Aos oito logismos, ou pensamentos, poderíamos acrescentar muitos outros, como o ciúme, a inveja… e todas as projeções que nos impedem de ver e de aproveitar o que está no presente.  Não por acaso, mais tarde, os Padres do Deserto chamaram estes pensamentos ou expressões da mente, que constituem obstáculos à apreensão simples e pacífica do que existe e do que somos, de “demônios” (shatan, que, em hebraico, quer dizer: “obstáculo”).

Em resumo, o principal obstáculo à paz, o maior dos demônios é a nossa própria mente, este reservatório de emoções passadas, que se derrama sem parar sobre o presente; este “pacote de memórias” que denominamos ego, ou eu.  Quem sofre ou é infeliz é sempre o eu e nossa identificação com o que não somos realmente.
Que só o presente existe é um segredo bem guardado; o que era, não é mais; o que será, ainda não é; se vivermos eternamente em nossos arrependimentos e projetos, teremos que sofrer e passaremos ao largo do “segredo”… “Ora ao teu Pai que está aí, dentro do segredo”, na presença do que é presente.  São palavras do Evangelho e também palavras de cura… A morte não existe ainda, ela não é. 
Só permanece este “Eu Sou”, que existe desde sempre e para sempre.  Não podemos ir para outro lugar, senão onde estamos; e onde nos encontramos aqui já estamos.  Por que procurar, em outra parte, a vida e a paz que nós somos, se a paz é nossa verdadeira natureza, não está por fazer?  Trata-se, primeiramente, de conferir menos importância àquilo que nos “impede” de estar em paz; depois, não lhe dar importância alguma, se quisermos; e isto significa aderir, instante após instante, ao que é, com um espírito silencioso, uma mente serena, ou melhor, não identificados com as memórias e com as emoções que essas memórias provocam.
Lembrar-se de que nossa verdadeira natureza está em paz é uma forma universal de oração.  Essa rememoração de nosso ser verdadeiro encontra-se, efetivamente, na base das práticas de meditação de várias culturas ou religiões (dhikr – prática islâmica; japa – modalidade de ioga; hesicasmo – seita antiga de místicos cristãos orientais, etc.).
Temos medo de que?  De perdermos a cabeça, perdermos a alma, de não sermos o que nossas memórias nos dizem que somos, não sermos coisa alguma do que pensamos ser?  Perdem-se as ilusões, os pensamentos, e fica somente o medo de morrer. 
Se eu paro de me identificar com o que deve morrer, permaneço já naquilo que sou desde sempre. Não pode haver outro artesão da paz que não seja aquele cujo corpo está relaxado, que tem o coração livre e a mente pacificada. 
Mesmo o nosso desejo de paz pode tornar-se uma tensão, um nervosismo, um obstáculo à paz, uma obrigação, um dever que se somará à infelicidade e à inquietação do mundo.
     Afirmar que estamos em paz não é negar nossos medos, nossas memórias, nossos sofrimentos… é colocá-los em seus devidos lugares, na corrente insensata e tranqüila da verdadeira Vida…“
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Jean Yves-Leloup (1950-) – francês, doutor em Psicologia, Filosofia e Teologia, escritor, conferencista dominicano e depois padre ortodoxo.

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