Andréia Moura
Denunciar os desmandos do mundo, dar voz à cidadania,
colocar em prática a constituição e fiscalizar o cumprimento da lei nos
poderes. A imprensa tomou para si o papel de monitorar, fiscalizar, cobrar,
enfim, manter as condições de existência de uma democracia. Logo, como quarto
poder, assumiu uma responsabilidade difícil, mas necessária para o bom
andamento da sociedade. Essa responsabilidade traz consigo grande liberdade e
inúmeras possibilidades que fazem da imprensa um império hegemônico. "Nos
últimos quinze anos, à medida que se acelerava a globalização liberal, este
'quarto poder' se viu esvaziado de sentido, perdendo, pouco a pouco, sua função
fundamental de contra-poder", já afirmou Ignácio Ramonet, em seu livro O
Quinto Poder.
Se o jornalismo é o vigia do governo, quem fica de
olho nos vigias? "Estamos aqui diante do princípio da reciprocidade: todas
as liberdades e garantias são asseguradas aos jornalistas, mas, em
contrapartida, todas as formas de acompanhamento e fiscalização do trabalho são
bem-vindas e igualmente necessárias", declara Josenildo Luiz Guerra,
jornalista e professor da Universidade Federal de Sergipe, doutor em
Comunicação e Cultura contemporâneas.
A crítica de mídia é necessária e denominada por
alguns como o quinto poder. E ela é, exatamente, o foco de tensão que permeia
esse assunto. É possível incentivar uma imprensa fiscalizadora e estimular a
crítica à mídia sem sufocá-la, mantendo ainda assim a liberdade da própria
imprensa e dos seus críticos? A reposta para a questão tem sido apresentada por
alguns poucos sites que se dedicaram à missão de criticar a mídia. "Esses
websites não só ateiam mais fogo nas fogueiras das vaidades jornalísticas, como
inflamam o cidadão comum a lançar um olhar mais crítico para a até então inquestionável
mídia", opina Guerra.
Essa é uma das funções primordiais da crítica de
mídia. Criar na sociedade um senso questionador, um comportamento mais atento
na absorção das informações. "Criar, assim, camadas de público mais
críticas", afirma Rogério Christofoletti, doutor em Ciências da
Comunicação, mestre em Lingüística e professor de Legislação e Ética em
Jornalismo na Univali de Itajaí. "Em terras brasileiras, não há tradição,
ousadia, nem tampouco disposição para espalhar iniciativas massivas que atuem
no sentido de imprimir uma leitura crítica aos meios" declara. Segundo o
jornalista, as experiências existentes se limitam ao campo acadêmico e à
iniciativa privada.
O pai de todos
Criado em 1996, no ambiente acadêmico do Laboratório
de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) da Unicamp, o Observatório da
Imprensa é, praticamente, o pai da crítica de mídia no Brasil. Em 2001, passou
a ser um projeto do Instituto para o Desenvolvimento do Jornalismo (Projor),
uma organização sem fins lucrativos. O Observatório funciona como um fórum
permanente que conduz uma discussão sobre os veículos de comunicação, reunindo
profissionais e demais interessados na área. "O Observatório procura ser o
mais isento possível e é transparente por não ter conexão com nenhuma empresa
da mídia", declara Ruben Holdorf, professor do curso de jornalismo do
Unasp (Centro Universitário Adventista).
No site, encontramos análises, queixas, artigos,
comentários, denúncias e debates. O Observatório assume a postura de uma arena
onde a participação de todas é valida. Mas há quem diga, entre eles
Christofoletti, que mesmo assim não se trata de "um local neutro, onde as
opiniões gravitam sem hierarquia ou prevalência". "O Observatório
também manifesta suas posturas, organiza os conteúdos segundo uma lógica
própria e participa ativamente da discussão", pondera.
"O Observatório da Imprensa , de um modo geral, é
uma experiência bem-sucedida porque a crítica - embora aberta, plural e
disponível para a sociedade -, é, essencialmente, feita por jornalistas. A
crítica, praticada por quem conhece o ofício, ganha credibilidade",
analisa o jornalista Victor Gentilli, doutor e mestre em Ciências pela USP,
diretor administrativo da SBPJor e professor da Universidade Federal do
Espírito Santo.
Os outros
Depois do Observatório da Imprensa, projetos com os
mesmos objetivos foram surgindo. Entre eles, o Monitor de Mídia. Desenvolvido e
coordenado pelo jornalista Rogério Christofoletti na Universidade do Vale do
Itajaí (Univali), em
Santa Catarina , ele disponibiliza análises quinzenais sobre
as produções jornalísticas e avalia a conduta ética dos profissionais do
Estado. O site reúne professores e alunos e realiza um acompanhamento
sistemático. "O Monitor faz um trabalho muito interessante em relação aos
outros observatórios. É o Observatório em miniatura. Analisa
e critica a imprensa catarinense muito bem" afirma Holdorf. O projeto já
concluiu três pesquisas de iniciação científica.
Outro projeto no campo da crítica de mídia é o SOS Imprensa.
Contudo, não é propriamente um veículo de análise das produções jornalísticas.
A iniciativa funciona mais como uma ouvidoria pública e é realizado pela UnB
desde 1996. Ele disponibiliza ao público um assessoramento para casos de erros
e abusos da imprensa. O SOS possui até um telefone para atender aos usuários da
rede: o Disque-Imprensa. No site, pode-se encontrar vários cases de erros e
abusos da imprensa, notícias de mídia e artigos relacionados ao assunto.
O trabalho mais recente no campo é o Observatório
Brasileiro de Mídia, criado na faculdade de jornalismo da USP, em 2004. O site
não tem atualização freqüente, pois é abastecido pelas produções de alunos. Ele
tem um caráter extremamente científico e disponibiliza além de artigos e
reportagens sobre jornalismo, pesquisas sobre coberturas midiáticas.
É pertinente citar ainda o ombusdman, palavra sueca
que significa representante do povo. Essa experiência tem adquirido força a
cada dia e tem sido implantada no mundo inteiro. No Brasil, a iniciativa mais
conhecida é a da Folha de S.Paulo. O cargo foi implantado em 1989 e, desde lá,
sete jornalistas já passaram pela função. O ombusdman atual da Folha é o
jornalista Marcelo Beraba. O cargo causa certa polêmica, afinal, a crítica é
exercida dentro do próprio veículo de comunicação. Mas, segundo o professor da
Faculdade de Comunicação da UnB e um dos fundadores do SOS Imprensa, Luiz
Martins da Silva, e Fernando Paulino, doutorando na UnB e professor do
Instituto de Educação Superior de Brasília, “a presença de um ombudsman, em
geral, aperfeiçoa a imagem da instituição".
Observatórios nas universidades
Diferente dos ombudsmen, os projetos de crítica de
mídia são, essencialmente, realizados em ambiente acadêmico. Todos foram
desenvolvidos dentro de universidades e têm, aparentemente, alcançado seus
objetivos. Luis Martins da Silva e Fernando Paulino explicam com propriedade
porque as universidades são locais ideais para se estabelecer um veículo de
crítica de mídia. "A academia se situa a uma distância segura das pressões
do mercado, o que permite exercer uma crítica técnica e aprofundada, isentando-se
de submissões comerciais. Ela também tem o papel de formar novos profissionais
da área, o que demanda oferecer conteúdos que estimulem uma leitura crítica dos
procedimentos e dos produtos midiáticos", dizem.
No Brasil, os observadores de mídia são peculiares,
diferentes de os de outros lugares como nos EUA, por exemplo. Isso pode se dar
por causa das características políticas e midiáticas do país ou, simplesmente,
pelo pouco tempo que as iniciativas deste gênero possuem. Os veículos de
crítica de mídia não tomam partido, ou seja, não se institucionalizam.
Mantêm-se, como já citado, na iniciativa privada e no meio acadêmico. "Ao
não se institucionalizar, esses veículos brasileiros ganham mais agilidade e
operacionalidade, escapando da burocratização e dos ranços paquidérmicos dessas
gestões. Ganha-se com leveza, versatilidade, pluralidade, diversidade",
afirma Christofoletti.
É importante ressaltar que, na universidade, deve ser
implantada uma espécie de sistematização entre a crítica e os fundamentos
conceituais. Josenildo Luiz Guerra salienta sabiamente que "o trabalho
jornalístico resulta da sistematização do conceito de jornalismo como
instituição e da possibilidade efetiva de sua prática numa determinada
sociedade". Segundo ele, é somente isso que dá sentido à atividade. Victor
Gentilli acrescenta que a crítica só tem valor pedagógico quando o aluno é
capaz de mudar, em sua atividade jornalística, aquilo que aponta em suas
críticas. "Se a crítica não vier acompanhada de uma nova maneira de
praticar o jornalismo, torna-se algo extemporâneo e desligado da realidade
profissional", completa. Gentilli afirma, ainda, que o que move o jovem a
ser jornalista são as referências de jornalismo com qualidade. "Em
palavras mais duras e diretas, jornalismo merecedor de um olhar crítico",
conclui.
As iniciativas de crítica de mídia no país devem ser
reforçadas e novos experimentos do gênero devem ser implantados a fim de
quebrar a resistência das empresas de comunicação e de grande número de
profissionais que insistem em fugir da autocrítica. "A consolidação de um
sistema permanente, que avalie os meios de comunicação, é também mais uma viga
no edifício da democratização das relações no país", explica
Christofoletti.
Por isso mesmo, o profissional propôs, no Intercom
deste ano, durante a mesa temática "Crítica de mídia e o papel das
universidades no aperfeiçoamento dos processos jornalísticos", a criação
de uma rede de observatórios de imprensa em universidades. Durante
a discussão foram separadas várias propostas para a viabilização do projeto: 1)
a criação de uma lista eletrônica para troca de mensagens dos interessados em
estabelecer a rede; 2) a divulgação dos textos que fizeram parte da mesa do
Intercom pelos já citados sites de crítica de mídia do país; 3) a criação de uma
cartilha voltada para o público trazendo conceitos sobre responsabilidade
social, ética na imprensa e outros; 4) a manutenção de pontes com outros
países; entre outras.
Essa idéia não é nova. Ela vem sendo cogitada desde
1996, mas com esforços difusos e esparsos. A proposta de Christofoletti é criar
uma sistematização para que essa rede seja colocada em prática com eficiência.
Cada universidade poderá estabelecer seu tipo de crítica e se voltar para os
veículos de comunicação de sua região. Mesmo com uma crítica regional, através
desta rede ela alcançará uma expressão nacional. "É importante que os
observatórios funcionem como pólos difusores de uma cultura de leitura crítica
de mídia e que sejam células disseminadoras desses padrões de consumo informativo.
Os observatórios atuam em nível local, mas difundem o conhecimento que geram em
escala nacional, global", enfatiza Christofoletti.
Os benefícios que experiências como esta podem trazer
para o exercício da profissão e para a formação cultural da população ainda não
podem ser contabilizados. "A estrutura de uma rede como a de observatórios
de mídia não é mensurável em termos concretos. Mais importante do que máquinas
e equipamentos são as relações estabelecidas, os trânsitos e os movimentos
gerados", explica Christofoletti. Será necessário tempo e investimento
para que s consiga transformar uma sociedade passiva em uma comunidade mais
ativa e crítica. Esse é só um começo. "Tais experiências formam apenas um
feixe de um sistema ainda em formação", avalia Christofoletti.
As propostas apresentadas podem conduzir a diversos
caminhos, mas de acordo com Luis Martins da Silva e Fernando Paulino, todas
buscam contribuir para a construção de uma mídia mais equânime. A idéia de uma
mídia mais equilibrada e, conseqüentemente, uma crítica mais branda, poderá se
concretizar no futuro.
"A crítica equilibrada tende a se transformar em
estudos culturais. Esses estudos, voltados para o indivíduo e seu efeito sobre
a mídia, devem crescer a cada dia mais", acredita o jornalista Vanderlei
Dorneles, professor do Unasp e mestre em comunicação pela Umesp. Apenas o
diálogo e a certeza da necessidade, da oportunidade e viabilidade desta rede é
que poderá torná-la real e prática. "Afinal qualquer rede começa de uma
pequena trama", sintetiza Christofoletti. Só o tempo trará maturidade à
crítica de mídia deste país. Os caminhos que ela tomará para alcançar o
amadurecimento dependem, unicamente, das escolhas que forem feitas no presente.
http://www.canaldaimprensa.com.br/canalant/49edicao/reportagem.htm
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